quarta-feira, 22 de abril de 2009

Valsa do olhar urbano

Enquanto uma linha cantava, eu lia uma página. Quando outra linha dançava, eu relia um parágrafo. Eu tocava o papel e imaginava. O vento empurrava uma página na outra. As linham se gostavam, se alinhavam. Eu olhava para o livro, evitava o vento, relia as linhas e as palavras, gostava. Eu não olhava para ninguém, somente para o livro.

Mas ia mudar...

Do meu lado, um homem de muletas entrava no vagão. Por pouco, não me derrubava. O homem andava e pedia. Um outro lhe dava às costas, outro lhe balançava a cabeça. Eu olhava para o livro e para o pedinte. O homem falava e pedia. Com o livro na mão, eu olhava e torcia para não ser notado. As palavras me chamavam. As muletas balançavam. As pessoas não olhavam. Eu evitava. Vagão a dentro, sem uma perna, o homem partia a pedir. Os olhos no livro, parei de olhar o homem.

Noutro vagão, noutro trem, um menino gritava fino a cada barulho agudo dos trilhos. A mãe lhe protegia os ouvidos com as mãos. Assustadas, as pessoas olhavam. Eu olhava para o livro e para o menino. Gritava fino e parava. Os ouvidos cobertos. As pessoas fitavam o menino que parecia mudo. Ele gritava, a mãe se encabulava. Indignadas, as pessoas olhavam. Eu olhava para o livro aberto e para o menino. Assustado, ele gritava. O trem parava e o menino falava: parecia mudo, mas não, falava agitado, enrolado. Ele resmungava. Eu não entendia. O trem andava. Os cachoalhões aumentavam: os gritos. As pessoas se assustavam. Eu olhava. O trem parava. Na estação, o menino e a mãe se perdiam. As pessoas olhavam. As páginas me chamavam. Andava: parei de olhar o livro, o menino e a mãe.

Do outro lado dos trilhos, um grupo fantasiado cantava. Com o livro fechado, eu olhava. As pessoas olhavam. O grupo batia palmas e cantava. Eu não olhava o livro, olhava a cantoria. Eu sorria e andava. Ao fundo, um homem sentado sorria. De lá, o grupo cantava, de cá, os degraus eu subia. Sorria. Degrau à frente, uma mãe e um menino conversavam e olhavam. Ela sorria. Eu nem mais olhava o livro, sorria. Lado a lado, mãe e filho se olhavam. O menino perguntava o que eles cantavam. A mãe cantarolava a música. O menino olhava para a mãe. Com o livro fechado e a mochila ao ombro, eu olhava para o menino. Ele continuava: olhava para a cantoria e para a mãe. Ela sorria, olhava para o menino e para o grupo que cantava. Degraus abaixo, eu sorria.

No outro lado do trilho, no barulho da estação, o canto e as palmas se perdiam. Eu olhava. Olhava para a mãe que cantava e sorria e olhava para o menino. Eu pensava. Pensava no homem que pedia e no menino que gritava. No alto da escada, livro fechado, as páginas me chamando, mochila às costas, eu olhando, pensando, parei. Deixei de sorrir. Andei, segui em frente, estação a dentro.

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Foto extraída daqui.

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